Leio no suplemento Ypsilon do Público de hoje que o Blade Runner vai ser reeditado. É a quarta versão do filme, a original não era propriamente o que o realizador Ridley Scott pretendia, a 'director's-cut' de 93 (salvo erro) era uma versão de testes, e ainda houve uma outra pelo caminho. Acho que as vi todas...
Independentemente das versões que hajam, Blade Runner é, há muito, um dos meus filmes preferidos. Não consigo ter um único. Não posso escolher entre 2001 Odisseia no Espaço e o Cinema Paraíso, ou entre O Pai Tirano e Casablanca, ou entre Janela Indiscreta e As Férias do Senhor Hulot, ou entre mais uma meia dúzia. São, cada um, demasiado bons para serem preteridos em relação aos outros, e nenhum se substitui.
Blade Runner é julgado, pelos que não o conhecem e/ou que não o perceberam, como apenas um filme de ficção científica. Tem muitos néons, imagens nocturnas, alguns efeitos especiais, uns andróides e coisas assim que sugerem um tal rótulo. Mas é sobretudo, como leio no mesmo artigo, um filme humanista.
Comecei a perceber, e a adorar, o sentido do filme quando lendo a ficha técnica reparei no nome do livro que lhe deu origem: 'Do Androids Dream of Electric Sheep?' de Philip K. Dick . A pergunta essencial - uma entre tantas - é tão simples como isto: se estou vivo, porque não posso viver? Se os andróides trabalham, correm, ajem e pensam, porque não hão-de sonhar? E se sonham porque não podem viver mais? O seu problema existencial tem origem no facto de quem os criou ter-lhes colocado um prazo limitado de vida, ao fim do qual se desactivam, em linguagem humana 'morrem'. A morte do andróide líder do bando de andróides procurado pelo protagonista é dos momentos mais ternos e humanos da história do cinema. Ele apenas pergunta - e ninguém lhe responde - porque não pode viver. É tudo o que ele quer. Não tem uma doença, não cometeu um crime, está activo, sonha. Quer apenas viver, mas não pode. No livro a justificação para a limitação é a de evitar que os andróides se tornem demasiado humanos. No filme a justificação é técnica, há uma impossibilidade de prolongar a vida da máquina além daquele tempo.
Na sua busca por uma resposta que se vai tornando urgente, o andróide líder do gang encontra quem lhe construiu os seus olhos que lhe diz "fui eu quem construiu esses teus olhos". O andróide responde-lhe esta frase paradozal: "se ao menos tu visses o que eu vi com os teus olhos!...".
Curiosa também é a descoberta de si, do eu, por uma andróide. O protagonista demorou a perceber que aquilo era um andróide, e a própria andróide se mostrava convencida que era humana invocando até as memórias que tinha da sua meninice e as fotos ao lado da mãe. Até que um dia se senta ao piano e, começando a tocar, diz "eu não sabia que sabia tocar...". Aí percebe que não é quem julgava, e toma consciência que a sua vida está limitada, tem um prazo.
Ironicamente isso é verbalizado em ataque ao protagonista quando este inicia a sua fuga na companhia dela, a andróide. Alguém lhe diz "É pena que ela não vá viver. Mas afinal, quem vive?". Aqui o temor que levou os humanos a colocar um prazo de vida nos andróides é devolvido com que em contra-ataque.
Ninguém tem um prazo de vida ilimitado. Todos morremos mas não falamos disso, não o verbalizamos. Há muito tempo li uma frase de alguém que dizia algo como "todos os homens sabem que um dia vão morrer, mas não acreditam que esse dia alguma vez chegue". Fugindo com a andróide o protagonista não sabe quanto tempo viverá com ela. Mas isso ninguém sabe, seja um andróide destes ou um ser humano.
Devo ao JM ter-me ensinado a gostar do filme, de que ele muito gostava. O seu gosto por cinema, e pela arte em geral, desenvolveu-lhe uma perspicácia invulgar, que eu muito apreciava. Ele disse-me uma vez que descobria sempre algo de novo cada vez que revia o Blade Runner. Eu não sei quantas vezes já o vi, mas continuo a descobrir coisas novas.
Ouvi na rubrica de cinema da TSF que está em exibição, em cópia nova, ‘O Meu Tio’, um filme de 1958 de Jacques Tati. Serve o mote para aqui inaugurar uma linha de textos dedicados aos meus filmes favoritos. Não me ocorrera começar com este, não é o meu filme dos filmes, mas serve para resolver a até aqui insanável dúvida, que atrasou esta inauguração, sobre qual filme escolher para começar entre tantos de que gosto e tão diferentes entre si.
‘O Meu Tio’ é um filme formidável. De um lado os novos ricos nas suas vidas hipermodernas (a acção desenrola-de nos anos 50) rodeadas de automatismos úteis apenas para sublinhar a futilidade da sua forma de vida. Do outro lado os velhos e os não ricos que lutam a sua vida numa velha aldeia, rústica, plurifacetada, tradicional e onde todos se conhecem e se falam. O ‘sobrinho’ do filme é filho de um casal rico, bem na vida, ela é doméstica e vai recebendo as amigas para chá. Ele tem um emprego numa grande empresa e vivem a sua vida estrita e absolutamente dentro dos hábitos, horários e espaços socialmente definidos. O ‘tio’, interpretado pelo próprio Jacques Tati, é irmão da mãe e vive na aldeia.
O ‘sobrinho’ adora o tio pela oportunidade de escape que este lhe proporciona, escape da casa, dos hábitos rígidos, dos horários, das cortesias. Naturalmente é a antítese de tudo o que os pais do miúdo entendem por correcto. Toleram-no apenas ao abrigo das obrigações decorrentes dos laços consanguíneos e o ‘pai’ até faz o frete de tentar arranjar um emprego ao cunhado na sua empresa super moderna e super automatizada.
O ‘tio’ deste filme é como os verdadeiros tios, aquela figura híbrida a meio caminho entre um pai atencioso e educador e um irmão mais velho, protector e brincalhão e que abre sempre novos mundos ao sobrinho. Eu tive a sorte de ter tios assim e devo-lhes muito mais do que alguma vez poderei pagar. Devo-lhes, ainda que não exclusivamente, o gosto pelo cinema, pela fotografia e pela música. Também por isso, mas não só, gosto muito deste filme.
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